quinta-feira, 12 de abril de 2007

Cegos papelistas

Vem de muito longe a memória dos cegos papelistas que, por mercados, feiras e romarias, apregoavam casos estranhos, sucessos inauditos, virtudes hagiográficas e relatos noticiosos, às vezes prognósticos e adivinhações. Tirando partido do lugar de sapiência e justeza que ao cego se atribui, anunciavam matéria oscilante entre a mistificação e a informação, entre a crendice e o pitoresco informativo, entre os casos conhecidos e as tragédias de folhetim, por vezes ao som rouco do harmónio ou da rabeca. Em tempos mais recentes, até os sucessos musicais e os êxitos popularizados pela rádio e pela tv davam matéria prima, de mistura com outras histórias, a estes bardos da era mediática, menos do lado da poética do espanto dos seus antecessores do que de uma lógica do reconhecimento com que interminavelmente replicavam os seus objectos.
Os cegos papelistas do século XVIII vendiam as histórias impressas em folhetos de papel barato, com letra miúda de má qualidade, por vezes com umas quantas imagens a alimentar o fascínio das palavras que contavam histórias em versos de pé quebrado, pouco férteis nos mecanismos estruturais e votadas a fazer permanecer receitas testadas e de sucesso garantido. Os cegos cantores do século XX seguiam a mesma receita, com as letras das músicas e as fotografias das estrelas do momento à mistura. Uns e outros deram origem àquela quantidade imensa de objectos escritos que atestam a vitalidade da cultura pobre e que a cultura rica (o binómio é de Arnaldo Saraiva) despromoveu. São por isso raros os exemplares que testemunhem dessa memória. E se os mais antigos ainda se encontram em bibliotecas especializadas, de acesso restrito, constituindo o corpus da literatura de cordel, os folhetos mais recentes foram certamente menos bafejados pela sorte. As letras das músicas ficaram perdidas na voragem do mundo do espectáculo, todos os anos novas e esquecidas logo depois. Uns e outros sem alcançarem a dignidade literária e sem se acolherem ao estatuto do autor para sobreviver na memória do sistema cultural.
Quanto ao cego, papelista e cantor, não será demais dizer que o século XX assistiu (quase) indiferente às profundas mutações que a sua figura sofreu e que levaram ao seu inelutável desaparecimento. Resta-nos o seu lugar central no imaginário colectivo, onde a expressão artística e criadora tem sabido, hoje como no passado — lembrem-se as fantasias românticas sobre o papel do bardo na construção da identidade das nações —, reencontrar a personagem na sua mais autêntica presença, e assim tem permitido o nosso reencontro com as raízes da cultura e com as margens quase submersas do nosso imaginário. Não resisto a apontar como exemplar o Rio do ouro, de Paulo Rocha (1998), onde José Mário Branco canta o romance do filme com versos de Regina Guimarães, acompanhado pelo rapaz da rabeca. O encontro que neste espectáculo se concretiza abre também, à sua maneira, as portas de ingresso e de regresso a esse imaginário de coisas perdidas, de sucessos e crenças, de histórias cantadas e contadas pela voz funda e luminosa do cego.

[Texto de José Alberto Ferreira publicado originalmente com o CD "Canções do Ceguinho", editado em Maio de 2003]

Sem comentários: